quinta-feira, 16 de abril de 2009

A GARÇA E AS TARDES

encontrei uma garça gaga.
atropelava-se a si própria en quanto voava
com isso considerava-se aleijada.
pedi-lhe emprestada a gaguez.

hoje a garça é feliz.

eu ganhei o hábito
de gaguejar tardes.
ONDJAKI
("Materiais para confecção de um espanador de tristezas" - Caminho)

O INICIO (1/7/02)

segui a lesma, a baba dela parecia um rio de infância
perdido no tempo, escorreguei no tempo.
nesse rio havia um jacaré, a fileira enorme de dentes
lembrou-me uma pequena aldeia cheia de cubatas [talvez a
aldeia de ynaril];
adormeci na aldeia.
ouvi um barulho - era a lesma a sorrir.
o sorriso fez-me lembrar um velho muito velho que
escrevia poemas. os poemas eram restos de lixo que ele
coleccionava no quarto ou no coração das mãos.
abracei o velho, quase que eu esborrachava a lesma.
ONDJAKI
("Materiais para a confecção de um espanador de tristezas " - Caminho)

quinta-feira, 2 de abril de 2009

NÃO POSSO ADIAR

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

de António Ramos Rosa

quarta-feira, 1 de abril de 2009

UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta para ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Ma tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão eterna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

de Alexandre O'Neill