terça-feira, 26 de maio de 2009

[NÃO POSSO ADIAR O AMOR PARA OUTRO SÉCULO]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa

terça-feira, 5 de maio de 2009

Máscaras

Máscara de Soares dos Reis

Se pudesse usá-la,

A tua, marmórea eterna alvura

Arrancaria ao teu “Desterrado”

Aquele olhar absorto,

Absíntico e morto.

Trespassado pela dúvida fria,

E esfarelá-la-ia em centelhas

Para despejar estrelas

Nas nossas cabeças moças

Dançando em louvor

Ao génio que te incumpriu.


Máscara da População dita Discente


Onde está a vossa endógena e moça rebeldia

Para assaltar desta casa o tesouro da criação?

Carregais vergados com dor vosso saco de estesia

Sem o brilho e o fulgor de uma revelação.

Tristes, velhos, cansados e descrentes

Derramais o cálice do dever de vosso ofício,

Compondo a máscara de ébrios discentes

Que as artes farejam como os cães seu vício.

Jamais ousareis levantar apolínea chama

Que é sonho, claridade, cintilação e vida

Mas também sofrimento, dor, paixão e drama?

Quereis permanecer máscara de gente perdida,

Que andando no mar teme, quer bonança, quer borrasca,

E assume o odioso cognome de geração “rasca”?

José Melo

sábado, 2 de maio de 2009

4 - POEMAS de JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

CALAFRIO

Foi ele quem me a apresentou. Pétrea
nívea
exangue. Meus lábios:à face da morte.
Nunca a
tinha beijado antes.

O FACTO DA MORTE

Austero sobre o colchão o fato
para levar no esquife
da sua morte. Nem uma nódoa ou mácula. O
fato que lhe pesou na boa-morte de tantos é
esse que o vai levar ao seu
próprio ritual. Atónitos
vamos passando o memento
uns-aos-outros
enquanto a Mãe aturdida à pergunta das gavetas
por uma que vá camisa com a gravata
que entretanto. Nenhum de nós acredita ainda que
ele morreu. Enquanto estiver vazio aquele
fato da morte
ninguém sequer admite que esteja morto
da facto.

PÁSCOA BAIXA

Durante a manhã inteira a barba
ainda cresceu. O vórtice que me picava
ao fim de um dia de trabalho
já o posso adivinhar
neste círculo de flores.
O seu torso é imóvel. Nada
diviso a mover-se (um relâmpago das pálpebras?
o pensamento de um dedo?)
velo a hesitação da barba qual
néscio agarrando tempo.
Durante a manhã de março a
barba ainda cresceu
qualquer coisa dentro dele ainda
não queria morrer.

VASILHAME

Paredes-meias com o muro onde jaz
o contentor
cheio de vidros vazios que
a queda torna iguais
ergue-se
um cipreste esguio que
anuncia o jardim
onde eles lançam os corpos -
a tara perdida da alma.