terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Nascemos, Nascemos, Nascemos

Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez.

Para quem quiser ver a vida está cheia de nascimentos.

Nascemos muitas vezes ao longo da infância

Quando os olhos se abrem de espanto e alegria.

Nascemos nas viagens sem mapa que a juventude arrisca.

Nascemos na sementeira da vida adulta,

Entre invernos e primaveras maturando

A misteriosa transformação que coloca na haste a flor

E dentro da flor o perfume do fruto.

Nascemos muitas vezes naquela idade

Onde os trabalhos não cessam, mas reconciliam-se

Com laços interiores e caminhos adiados.

Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez.

Nascemos quando nos descobrimos amados e capazes de amar.

Nascemos no entusiasmo do riso e na noite de algumas lágrimas.

Nascemos na prece e no dom.

Nascemos no perdão e no confronto.

Nascemos em silêncio ou iluminados por uma palavra.

Nascemos na tarefa e na partilha.

Nascemos nos gestos e para lá dos gestos.

Nascemos dentro de nós e no coração de Deus.

O que Jesus nos diz é: "Também tu podes nascer".

Pois nós nascemos, nascemos, nascemos.

(José Tolentino de Mendonça)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

BOM DIA BELEZA


BOM DIA, BELEZA!


Há uma catedral de anjos

Dentro dessa alma nua de Afrodite,

Ou de Héstia,

Demeter, Minerva ou Perséfone/Coré,

Mãos que nos falam duma brancura grega

Antiga, sem idade.

Irrompes do silêncio frio da espuma do mar

E vens abraçar-nos à entrada.

Aqui inicia-se a grande travessia,

Promessa de Beleza no meio de nós.

Sorriso de águia, de ave ligeira

Salto obscuro na temporalidade

Atravessas-nos e dóis

As nossas fragilidades doces pastosas.

Vem ensinar-nos o rude caminho

Que à casa dos deuses conduz!

Em ti há frutos rosados

E perfume de flor selvagem insuspeita

Acima de tudo és a mão do sonho,

A perfeição do Sol,

O combate da Palavra,

O cumprimento que nos

Abre, divina,

Devagar e a todos

A porta da nossa mortalidade.


(a uma estátua grega que habita, desde alguns dias, o hall da EASR)

OUTONO de 2009. José Melo

terça-feira, 26 de maio de 2009

[NÃO POSSO ADIAR O AMOR PARA OUTRO SÉCULO]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa

terça-feira, 5 de maio de 2009

Máscaras

Máscara de Soares dos Reis

Se pudesse usá-la,

A tua, marmórea eterna alvura

Arrancaria ao teu “Desterrado”

Aquele olhar absorto,

Absíntico e morto.

Trespassado pela dúvida fria,

E esfarelá-la-ia em centelhas

Para despejar estrelas

Nas nossas cabeças moças

Dançando em louvor

Ao génio que te incumpriu.


Máscara da População dita Discente


Onde está a vossa endógena e moça rebeldia

Para assaltar desta casa o tesouro da criação?

Carregais vergados com dor vosso saco de estesia

Sem o brilho e o fulgor de uma revelação.

Tristes, velhos, cansados e descrentes

Derramais o cálice do dever de vosso ofício,

Compondo a máscara de ébrios discentes

Que as artes farejam como os cães seu vício.

Jamais ousareis levantar apolínea chama

Que é sonho, claridade, cintilação e vida

Mas também sofrimento, dor, paixão e drama?

Quereis permanecer máscara de gente perdida,

Que andando no mar teme, quer bonança, quer borrasca,

E assume o odioso cognome de geração “rasca”?

José Melo

sábado, 2 de maio de 2009

4 - POEMAS de JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

CALAFRIO

Foi ele quem me a apresentou. Pétrea
nívea
exangue. Meus lábios:à face da morte.
Nunca a
tinha beijado antes.

O FACTO DA MORTE

Austero sobre o colchão o fato
para levar no esquife
da sua morte. Nem uma nódoa ou mácula. O
fato que lhe pesou na boa-morte de tantos é
esse que o vai levar ao seu
próprio ritual. Atónitos
vamos passando o memento
uns-aos-outros
enquanto a Mãe aturdida à pergunta das gavetas
por uma que vá camisa com a gravata
que entretanto. Nenhum de nós acredita ainda que
ele morreu. Enquanto estiver vazio aquele
fato da morte
ninguém sequer admite que esteja morto
da facto.

PÁSCOA BAIXA

Durante a manhã inteira a barba
ainda cresceu. O vórtice que me picava
ao fim de um dia de trabalho
já o posso adivinhar
neste círculo de flores.
O seu torso é imóvel. Nada
diviso a mover-se (um relâmpago das pálpebras?
o pensamento de um dedo?)
velo a hesitação da barba qual
néscio agarrando tempo.
Durante a manhã de março a
barba ainda cresceu
qualquer coisa dentro dele ainda
não queria morrer.

VASILHAME

Paredes-meias com o muro onde jaz
o contentor
cheio de vidros vazios que
a queda torna iguais
ergue-se
um cipreste esguio que
anuncia o jardim
onde eles lançam os corpos -
a tara perdida da alma.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A GARÇA E AS TARDES

encontrei uma garça gaga.
atropelava-se a si própria en quanto voava
com isso considerava-se aleijada.
pedi-lhe emprestada a gaguez.

hoje a garça é feliz.

eu ganhei o hábito
de gaguejar tardes.
ONDJAKI
("Materiais para confecção de um espanador de tristezas" - Caminho)

O INICIO (1/7/02)

segui a lesma, a baba dela parecia um rio de infância
perdido no tempo, escorreguei no tempo.
nesse rio havia um jacaré, a fileira enorme de dentes
lembrou-me uma pequena aldeia cheia de cubatas [talvez a
aldeia de ynaril];
adormeci na aldeia.
ouvi um barulho - era a lesma a sorrir.
o sorriso fez-me lembrar um velho muito velho que
escrevia poemas. os poemas eram restos de lixo que ele
coleccionava no quarto ou no coração das mãos.
abracei o velho, quase que eu esborrachava a lesma.
ONDJAKI
("Materiais para a confecção de um espanador de tristezas " - Caminho)

quinta-feira, 2 de abril de 2009

NÃO POSSO ADIAR

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

de António Ramos Rosa

quarta-feira, 1 de abril de 2009

UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta para ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Ma tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão eterna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

de Alexandre O'Neill

terça-feira, 31 de março de 2009

POEMA À MÃE

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura
Deis às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.
Boa Noite. Eu vou com as aves.

de Eugénio de Andrade

sexta-feira, 27 de março de 2009

PALAVRAS MÁGICAS



As palavras mágicas imitam o pensamento e disfarçam a vacuidade de ideias: são usadas por quem finge que pensa usando palavras e expressões que leu o ouviu algures, sem que se tenha dado realmente ao trabalho de pensar - nem sequer uma vez, quanto mais outra vez. Eis alguns exemplos: "modernidade", "construção", "problematizar", "problemática", "mediar", "mediatizar", "questionar", "questão", "questionamento", "paradigma", "identidade", "dimensão". Nem sempre estas palavras são usadas como magia lexical, mas a probabilidade de o serem é tanto maior quanto maior for a sua frequência por centímetro quadrado de texto.
Por exemplo, qual é a diferença exactamente entre um problema e uma problemática? Apenas a impressão de maior vagueza, e portanto de nos safarmos melhor usando palavras prestigiantes sem dizer coisa alguma de palpável. Um problema é algo razoavelmente definido que nos exige pelo menos uma tentativa de solução, e cuja solução depende em grande medida de sermos capazes de o formular com precisão. Uma problemática, ao invés, é um novelo arbitrário de palavras que convidam apenas à aristocrática dissertação ociosa e pretensamente culta, onde nenhuma ideia susceptível de discussão genuína se encontra.
E o que é um paradigma? No seu uso corrente, é apenas um modelo de algo. Leibniz é um modelo ou paradigma de filósofo, Bach de músico. Mas, para nossa desgraça e felicidade de mágicos lexicais, Thomas Kuhn (1922-1996) envolveu esta mesma palavra em magia negra, mudando-lhe o significado e caindo no goto dos preconceitos relativistas actuais: "paradigma" é agora uma palavra mágica que sugere sofisticação intelectual e a superação de suposta ilusões objectivas. Pretensas ilusões que nunca são cuidadosamente refutadas: a magia da palavra é em si suficiente e apenas se presume que é inculto quem declarar que não era realmente verdade que a Terra estava imóvel no tempo de Ptolomeu só porque ele e outras pessoas assim o pensavam. Do ponto de visto do dogma contemporâneo, é tudo uma quastão de paradigmas: cada época histórica tem o seu. Ironicamente, o paradigma da mentalidade actual é pensar que cada época histórica tem o seu próprio paradigma ou maneira incomensurável de ver as coisas, mas esta mesma ideia não é surpreendentemente vista como um mero paradigma, mas antes como a verdade imparadigmática sobre os paradigmas dos outros. É mesmo magia.
"Mediar" e "mediatizar" são mais dois exemplos de afasia cognitiva. São termos que dão uma aparência de susbtância ao tipo de trabalho intelectual que na glória universitária de antigamente se chamava honestamente "corte e costura": consiste em tirar umas palavras daqui e outras dali, misturar tudo e servir triunfalmente como reflexão original o que não passa de rugurgitação ritual do que os outros digeriram. Chama-se também "dissertação" a este canibalismo do verbo alheio.
Para pensar outra vez é preciso começar por eliminar o entulho verbal das palavras mágicas, e quanto mais depressa o fizermos, melhor.

"de Desidério Murcho" (Filósofo, em "Pensar outra vez", Jornal Público de 24.02.2009)

A DEFESA DO POETA

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou um código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que puseste
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quartos cinco e sete
que medo vos pôs na ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apredejeis meu pássaro
sem que ele canta minha defesa

Sou uma imprudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimetados do sonho!
a poesia é para comer.

de Natália Correia

sábado, 21 de março de 2009

CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olhos-os com os olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre À minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Porque me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca princípio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me de piedosas intenções,
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se levantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

de José Régio

sexta-feira, 20 de março de 2009

TODOS OS HOMENS SÃO MARICAS QUANDO ESTÃO COM FEBRE


Pachos na testa, terço na mão
Uma botija, chá de limão
Zaragatoas, vinho com mel
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer
Mede-me a febre, olha-me a goela
Cala os miúdos, fecha a janela
Não quero canja, nem salada
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada
Se tu sonhasses, como me sinto
Já vejo a morte, nunca te minto
Já vejo o inferno, chamas, diabos
Anjos estranhos, cornos e rabos
Vejo os demónios, nas suas danças
Tigres sem listras, bodes de tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes, que foi aquilo!
Não é a chuva, no meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes, fica comigo
Não é o vento, a cirandar
Nem as vozes, que vêm do mar
Não é o pingo de uma torneira
Põe-me a santinha, à cabeceira
Compõe-me a colcha, fala ao prior
Pousa o Jesus, no cobertor
Chama o doutor, passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada
Faz-me tisanas, e pão-de-ló
Não te levantes, que fico só
Aqui sozinho a apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer

de António Lobo Antunes

terça-feira, 17 de março de 2009

AS PESSOAS SENSÍVEIS

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinha outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinha outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
e não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão"

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

de Sophia de Mello Breyner

FRASEADOR

Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa? Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada.

de Manoel de Barros

segunda-feira, 9 de março de 2009

OS DIREITOS DOS PAIS


Agora toda a gente fala nos direitos dos filhos e se esquece dos direitos dos pais.

Nunca, como agora, se discutiu tanto a parentalidade – a competência para exercer a função de pai e de mãe – num contexto social em que a educação na família se tornou cada vez mais necessitada de reconhecimento social: hoje toda a gente emite opiniões sobre o que é ser “bom” pai ou dá conselhos sobre a melhor forma de educar os mais novos. Acima de tudo, perdeu-se muito do bom senso, da intuição e do reconhecimento das experiências passadas como fontes inspiradoras da educação: por isso os pais de hoje hesitam ou têm receio de expressar as suas dúvidas ou, o que é mais grave, temem mostrar as suas convicções. A fragilização do elo conjugal e o culto e idealização das crianças e adolescentes (por uma sociedade que despreza os idosos e glorifica a juventude) por certo sustenta este temor de muitos progenitores actuais.

Eu acho que os pais devem lutar pelos seus direitos.

Em primeiro lugar, o direito de poder expressar os seus pontos de vista sem medo, de forma informal, sem necessidade de estruturas que os dizem representar e que não os ouvem: que direito têm certas associações para falar em nome dos pais, se a sua representatividade é diminuta e se, sobretudo, não fomentam a troca de impressões entre famílias? O que é crucial é que os pais ouçam outros progenitores em circunstâncias de vida semelhantes, porque uma família tem diversas áreas de competência e o que uma consegue resolver deve partilhar.

Em segundo lugar, os pais devem também poder mudar de opinião. Alguns pensam que não, julgam que educar é dizer sempre o mesmo, mas erram: mudar de ideias é uma prova de progresso e de autocontrolo: há que procurar ser coerente, mas o medo da inconsistência é um mito moderno e só não muda de opinião quem não tem ideias.

Depois, é bom adiar algumas acções dos pais, para reflectir e para dar possibilidade aos filhos de encontrarem o seu próprio caminho. Uma educação demasiado protectora não conduz à autonomia e faz com que os descendentes fiquem sempre à espera da opinião dos pais, não sendo capazes de diferenciar. No meu livro A Razão dos Avós, procurei demonstrar como a imaturidade de muitos pais de hoje deriva da ausência de procura de autonomia, por via de uma educação demasiado “camarada”, que não permitiu a construção de espaço de liberdade e de aventura, os únicos capazes de fazer crescer.

E os pais também precisam cada vez mais de conhecer o mundo dos filhos, esse é um direito pelo qual têm de lutar. Devo confessar que, para alguns progenitores, o espaço e o tempo junto dos mais novos é vivido como uma maçada: saturados pelo trabalho, querem nos tempos livres estar com os amigos ou sem fazer nada, mas a verdade é que é crucial entrar no mundo dos mais novos. O mundo das crianças e dos jovens é agora tão determinado por forças fora da família (amigos, escola, Internet, televisão…) que quem não luta para entrar nesse mundo fica mesmo de fora. E quando se trata de questões de segurança ou saúde, o dever de intervir dos pais é inalienável: por isso não há outra solução se não a de reconectar filhos e pais, de todas as maneiras que for possível.

Quando os filhos não estão bem, os pais têm o direito de actuar: devem começar por reduzir as críticas, mostrar afectividade e empatia, descobrir um interesse do filho mais ou menos oculto, mas que pode ser potenciado. É um direito dos pais exigir a atenção dos filhos, embora com respeito pela sua privacidade: tudo se poderá resolver se ambas as gerações souberem contar as suas experiências em termos afectivos, não adiando uma conversa que poderá ser esclarecedora.

O século XXI vai ser o da importância do privado, como sempre aconteceu em épocas de crise: por isso a parentalidade responsável e criativa é um dos grandes desígnios do nosso tempo.

Daniel Sampaio

Em Revista Pública de 1 de Março de 2009

(NOTA: O sublinhado é nosso)