Quem pertence à geração que anda pelos 50 anos que recebeu a herança da escola salazarista, em particular nos meios rurais, reconhece facilmente a distância do seu modelo educativo face ao actual: naquele tempo, os pais iam à escola a medo, de chapéu na mão, mais as mães que, sobretudo elas, eram as interlocutoras naturais dessa suprema autoridade que era “a professora primária”. A escola era um edifício inóspito, vazio de mobiliário, tirando as carteiras, com os inevitáveis tinteiros de porcelana branca encaixados, dois a dois, entre as ranhuras para depositar as penas,
aqueles derramadores de borrões de tinta que nos “tatuavam” os dedos e os cadernos, nos intervalos das cópias, dos ditados ou das terríveis contas de dividir por cinco, com vírgulas. Além da secretária da “mestra” decorada com a régua, a cana “de apontar” no quadro negro, e alguns objectos mais ou menos decorativos pessoais, pouco mais restava que uns mapas coloridos do Portugal “Continental, Insular e Ultramarino”. Talvez o crucifixo ao centro da parede, por cima do quadro.
O resto era as nossas presenças, de pobres alunos, feitos destinos vulneráveis de um país de mistérios, de sombras e de rezas. Estávamos ali, à espera de ser gente com pressa de ficar aptos para trabalhar, para fugir daquele lugar estranho, onde não havia campos, pássaros ou ninhos e todas as sensações visuais, auditivas ou tácteis se associavam a estímulos condicionados de bolos, reguadas e tantos outros castigos físicos.
E, no entanto, se todos tivemos que atravessar essa imensa e institucionalmente pouco solidária manhã submersa, não podemos limitar esta etapa crucial do desenvolvimento da nossa personalidade à ideia sonâmbula de um certo rosário de tormentos. Isso não! Nós fomos protagonistas de aprendizagens múltiplas que digerimos e transmutámos em valores. Em particular todos aqueles valores sociais e políticos que constam do apego à liberdade, à democracia participativa, à solidariedade, ao desenvolvimento corporizado naquele estribilho do Sérgio Godinho que dizia “a paz, o pão, habitação, saúde, educação...só há liberdade a sério quando houver...”. É oportuno recordar tudo isto agora, por estes tempos em que campeia um individualismo feroz, onde parece que tudo rola segundo os esquemas mecânicos do mercado, isto é, do vil metal, e onde a realidade mais rica, autêntica e realizante que é a pessoa, entendida como sujeito de dignidade, parece ter-se esfumado.
Neste contexto, como é que devemos encarar a educação? Que perspectivas de valores a transmitir aos mais novos? Quais as nossas prioridades? Ensiná-los a ser gente mentalmente asseada, respeitadora, honrada, capaz de saber comprometer-se, de ser fiel à palavra dada, de saber usar, como diziam os mais antigos, “uma camisa lavada”? Penso que objectivamente todos os pais pretendem desenvolver nos seus filhos uma personalidade equilibrada e matizada por um sistema de atitudes gerador de procedimentos de integração na vida colectiva, em ordem a uma sociedade portuguesa globalmente melhor e progressiva. Mas há tantos obstáculos, tanto telelixo a barrar o caminho do diálogo no seio da família que temo que tudo não passe de meras intenções. A família vê reduzir-se o seu campo de manobra no processo de socialização, “atirando” para a escola cada vez mais exigências nestes campos. Como pode esta assumir a tarefa de transmitir valores cívicos, éticos, políticos? Tem que o fazer com toda a urgência disso não poderá restar qualquer dúvida, sob pena de uma rápida desintegração do tecido colectivo. E já vamos tendo alguns alarmantes sinais, em particular no que toca ao desrespeito pelos outros, na estrada, na rua, onde quer que seja; ou na dificuldade que os jovens parecem sentir em aceitar assumir regras que nos cumpre a todos defender e partilhar...
Ora, só propugnando um acréscimo de diálogo entre escola e família, fazendo deste binómio uma realidade viva e dinâmica, poderemos estar seguros de que o mundo caminhará no sentido do progresso social, dos grandes valores por que toda a nossa geração lutou e luta, pelo menos desde há trinta anos. E há muitas estratégias para conseguir esta comunicação, a questão está em pedir a ambas alguma abertura e imaginação, conjugadas com boa vontade de parte a parte. Com a consciência de que não será nada mau começar, ó pais e professores, por ler alguma coisinha: há por aí tanto livrinho, jornais e revistas bem interessantes. Ou se quiserem convidar “individualidades”, há algumas que vão sempre: “convoquem” o Prof. Daniel Sampaio que esse nunca falta!
José Melo
1 comentário:
Prof. Melo:
Parabéns pelo seu "artigo"! É reconfortante saber que os nossos filhos estão entregues a alguém que defende valores sociais, actualmente tão esquecidos, como a solidariedade,a democracia, a liberdade... E é bom ler alguém que fala de ética e tem a coragem de lutar contra o individualismo e o predominio do "vil metal". É exactamente como diz Prof. está tudo nos livros!!!
Parafraseando Fernando Savater: "... viver não é uma ciência exacta, como as matemáticas, mas uma arte, como a música."
Isaura Santos - Mulher e Mãe
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